
Olá, queridos(as) leitores (as)!
Hoje quero compartilhar com vocês uma imensa alegria: meu novo conto "Novenas" foi selecionado pelo Edital 063/2021 da Fundação Cultural de Curitiba para compor o acervo de materiais que ficarão disponíveis no site da FCC para leitura gratuita de toda a população.
Fiquei muito contente também pela nota recebida: 95.3! Me orgulha muito ter passado pelo crivo de 5 pareceristas especializados e receber essa avaliação.

É igualmente uma honra estar em meio a outros grandes escritores e artistas que também foram contemplados com esse prêmio e saber que nosso trabalho estará à disposição do grande público.
Viva a literatura! ❤️
O conto ainda não foi publicado, mas vocês que são assinantes da minha newsletter poderão ler em primeira mão o texto premiado, segue abaixo.
NOVENAS
Nos dezembros da minha infância, dias e noites eram de pura curiosidade. O vento quente lambendo os braços nus, a terra vermelha impregnada nos pés brincantes e sempre uma ideia espevitada rondando os pensamentos.
Nesse mês, suposições do ano inteiro eram respondidas e surgiam piadas que durariam a vida inteira. Era um tempo especial, de preparação da casa e do coração. Os nove dias antes do Natal.
A tradição era assim: a família interessada recebia a capelinha com a imagem de Nossa Senhora, ficava com ela durante um dia, rezava o terço, colocava uma oferta (alguns tiravam, é verdade) e de noite recebia os vizinhos para fazer a novena.
Tudo era preparado com muito zelo, desde o chão de madeira encerado, os vidros cristalinos e nenhum vestígio de pó na estante. Acolhia-se os vizinhos com devoção na sala ou na garagem, dependendo do espaço. O cenário e as personagens variavam pouco: toalha de renda branca sobre a mesa central, castiçais envelhecidos para velas novas, o livro sagrado, a capelinha e cadeiras, muitas cadeiras (o público majoritário era composto de velhos e crianças). De jovens normalmente só os que moravam na casa (obrigados pelos pais).
Cada dia de novena era uma expectativa, pois adentrávamos casas que muitas vezes só víamos da rua e cujas cortinas fechadas originavam todo tipo de ficção. Íamos todos bem-vestidos e devidamente banhados. Cantávamos hinos, líamos a bíblia, refletíamos sobre a leitura e fazíamos a tal proposta de ação concreta. Quase no fim, o anfitrião saía com um copo de água benta e um ramo de alecrim benzendo a casa e todo mundo que estivesse nela. Então vinha o gran finale, quando distribuíam doces aos visitantes! As bolachas cobertas com glacê eram o auge, mas qualquer balinha já compensava a ida.
Estava liberada também a fofoca. Antes de voltar para casa as mães ficavam longos minutos tagarelando no portão. Excelente passatempo ficar de ouvido nos fuxicos enquanto fingíamos caçar os grilos e as cigarras que competiam na falação.
Adorava ir às novenas. A parte da reza era chata, confesso, mas as crianças sempre conseguem achar algo para se distrair, independente da situação. Ataques de riso contidos por beliscões da mãe eram comuns e estavam intimamente ligados ao que eu disse ali em cima sobre as piadas durarem uma vida inteira.
Não era para rir do sotaque italiano do seu Marcelino, que quando puxava a Ave-Maria dava uma entonação especial ao GesÚ, assim mesmo com G, um ú bem acentuado e sem o s. Mas a gente ria e depois não conseguia prosseguir com a Santa Maria sem lembrar daquele som ressonante.
Também não era para rir de quem tropeçava na leitura, mas uma vez minha tia Rute foi ler e era uma bíblia bem antiga, daquelas que ainda se escrevia com ph e pensem que ela foi pronunciando todos os ph com som de p, e os fariseus viraram pariseus, os faraós paraós e assim por diante. Nesse dia foi impossível segurar a gargalhada.
Além de tudo que era possível acontecer quando muitas pessoas estavam reunidas, eu ainda tinha uma tática infalível contra o tédio e que satisfazia igualmente meu excesso de curiosidade. Era a técnica do banheiro. Ninguém se negava a deixar uma criança ir ao banheiro. E para chegar até o banheiro eu saía da sala, via o corredor, dava uma espiada nos quartos se as portas estivessem abertas e, por fim, conhecia o lugar mais íntimo da casa.
Passei a conhecer todos os banheiros da vizinhança. Vi azulejos azuis, cor-de-rosa, marrons, de florzinha, torneiras que abriam para cima, para o lado, apertando, tampas de vaso que eram mais confortáveis e outras que eram um tormento, quem era mão de vaca e economizava no papel higiênico e quem dava o melhor para seu traseiro, enfim, dava para descobrir bastante sobre alguém através dessa parte da casa.
Entretanto, a experiência também me trouxe uma enorme aflição. Foi na casa da Ana, a jovem ruiva, sardenta e branquela que era mais velha e mais rica que todos nós, por isso não se misturava. Ana era uma moça séria, dessas que usam óculos e cabelos repartidos ao meio. Uma jovem fascinante com sua saia plissada, sapatos de verniz preto e seu total desprezo por nós, os pirralhos da rua.
Havia nela um mistério inebriante, desses que só existem atrás dos olhos das meninas sérias. Ana era para nós como um ser mitológico, nossa sereia encantada. Tocava flauta na orquestra da cidade e seu pai a mantinha sob um rígido sistema de proteção. Desabrochando dentro da redoma em que o patriarca a mantinha, evitando qualquer impureza externa, tudo nela era delicadeza, desde o corpo delgado à sianinha que cobria os seios frescos.
Não tinha um menino no bairro que não sonhasse com os lábios róseos da Ana. Naquele ano, existia entre nós um desafio para ver quem tinha coragem de burlar a vigilância do pai e espiar nossa musa pela generosa basculante do banheiro. O Juca, com seus óculos fundo de garrafa e espinhas pipocando na cara, era o mais determinado a cumprir o desafio, mas, justamente no dia em que a novena foi na casa da Ana e todos os meninos estavam lá, devotos como nunca, ele não apareceu.
Eu, que já tinha o costume de visitar os banheiros da vizinhança, vi a oportunidade única de bisbilhotar aquele local por dentro para depois poder me gabar para os amigos. Que arrependimento!
Na casa perfeita da Ana perfeita, fui à minha última novena de Natal. Aquele banheiro enorme me atormenta até hoje. O que vi sentado na privada daquela ilustre moradora nunca consegui entender. Nem sei ao certo se foi fantasia de uma mente infantil ou uma cruel realidade.
Ainda com o vapor quente de um banho recém tomado embaçando o espelho e fazendo com que fios de água corressem pelos azulejos, o cheiro doce de Ana inebriava o ambiente, causando-me um torpor surreal. Era como se eu estivesse adentrando o templo sagrado de uma vestal.
Foi quando, em meio a esse êxtase quase divino, percebi que uma das paredes estava sem azulejo e recém-rebocada. A umidade do local desenhou no reboco uma figura humana quase do meu tamanho e juro que ouvi a parede implorando perdão por ter cobiçado a jovem moradora da casa.
Saí correndo apavorado com aquela cena bizarra. Fiquei meio neurótico em ter que usar outros banheiros além do meu, abandonei as novenas, mantive-me bem longe da sedução da Ana.
Nunca tive coragem de comentar isso com ninguém, até esse momento. Velho, leve de culpa e lucidez, sem me importar que me chamem de maluco, adentro a casa abandonada de Ana com uma marreta em mãos.
É dezembro, estou agitado pelo calor e movido pela curiosidade, decidido a abandonar a dúvida que me atormentou a vida toda. Abro o portão enferrujado, arrasto o tapume que fecha a abertura que um dia foi porta e sigo para o banheiro da Ana.
Coração acelerado, sinto que o mistério está prestes a ter um fim.
Quebro os tijolos com a força da adrenalina e o mesmo devaneio da infância me toma por completo. Vindo de dentro da parede, o som da flauta tocando uma marcha fúnebre aumenta gradativamente quanto mais executo meu intento de derrubá-la.
Sento-me na privada para descansar, vista embaçada de suor e antiguidade. O cheiro
do perfume de Ana entorpece ainda mais os meus sentidos.
Enquanto tento entender se o que sinto e ouço é real, um pedaço da parede cai, deixando à mostra um crânio humano usando óculos de lentes grossas.
Francine Cruz.
E aí, gostaram? Deixem seus comentários!
Um grande abraço.
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